24 de abr. de 2009

Protegendo a cria


1965. Era de manhã. Ela acordou cedo porque o bebê já queria leite. Pouco mais tarde os filhos maiores acordaram um a um e já começavam os afazeres diários. Perguntaram pelo pai que há dias havia ido para o combate. Ela amoleceu o olhar e balançou a cabeça com um sinal negativo. Um estrondo ensurdecedor denunciou que aquele sossego tenso e melancólico havia chegado ao fim. Ela juntou os filhinhos e sem nenhum de seus bens empreendeu fuga. Resolveu passar pelo rio, ali, talvez não fossem atingidos pelos bombardeios americanos. Devia haver neste mundo torpe um local onde pudesse abrigar sua cria, tapar-lhe os ouvidos, abraçá-los tão fortemente, a ponto de nenhum mal poder atingi-los. Protegê-los, niná-los, dizer que tudo estava bem... tudo aquilo era um sonho ruim!




A pequena história que narrei é fruto de minha imaginação. Estou há dias observando essa fotografia e fiquei imaginando o que teria acontecido à essa pobre família, antes de chegar a essa trajetória fatídica. Muito embora a história narrada seja por mim fantasiada, os personagens são reais e eles estavam dentro de uma guerra real. Ninguém posou para essa foto, todo esse desespero estampado no rosto de cada uma das vítimas foi real.

Durante dez anos, as fotografias da Guerra do Vietnã foram eventos principais nas manchetes dos jornais de todo o mundo. É que o acesso aos campos de batalha era praticamente irrestrito, e por isso, os foto-jornalistas conseguiram mostrar a guerra no seu âmago, em sua essência indolente e cruel. E foi uma guerra com muitas batalhas, não obstante o uso efetivo de armas de última geração, inclusive químicas, bombas de fragmentação e as famosas bombas de napalm, por parte dos Estados Unidos. Frise-se, que ainda assim, mesmo com todo esse acervo armamentista, os norte-americanos não obtiveram triunfo, sendo, ao final, derrotados pelos experientes vietcongs e suas táticas de guerrilha. Um espetáculo de horrores prontinho para ser registrado!

Não só na Guerra do Vietnã, que foi o palco das tormentas sofridas por essa família, bem assim, em todas as guerras, a covardia, o sofrimento imensurável, o sadismo, são figuras dominantes. E além dos soldados que são obrigados e convencidos a lutar em nome de uma ideologia infame, sofrem também as mulheres, as crianças e toda uma nação é destruída.

O meu intuito em publicar essa fotografia, que já foi inúmeras vezes publicada, em todo mundo a partir de 1965, é de ressaltar, sobretudo, o sofrimento dessa infeliz mãe de família. Coagida pelas circunstâncias a fugir de seu lar, temendo o que poderia ocorrer a seus filhos pequenos, e claro, acuada em seu próprio país, que deveria ser seu porto seguro, ela não negou o seu instinto natural de sobrevivência, e lutou como uma leoa, até mais que os próprios soldados, eu penso. Não sei como foi o final dessa história, mas o fato é que uma estória bonita, triste e bonita. E mais, nos faz repensar nossos valores e nas ideologias que os dominantes do poder podem nos incutir.

O mais lamentável de tudo é que enquanto existem mães desesperadas tentando salvar seus filhos, crianças apavoradas por não conseguirem se defender, alguns poucos honestos tentando mudar o mundo, existe alguém, do outro lado, erguendo um império próprio, particular, do tamanho da sua vaidade. E para isso, ele tem que ser insensível e egoísta. O nome dele é Senhor da Guerra. E ele ‘não gosta de crianças’.

14 de abr. de 2009

Entre a Fidelidade e o Amor

Amar é ser fiel a quem nos trai, o Nelson Rodrigues é sempre sarcástico, ele coloca o dedo na nossa ferida, afinal, a fidelidade e os amores estão sempre em uma suposta guerra eterna.

Nunca vi uma definição de amor que seja mais forte, mais exigente e mais verdadeira. Um sentimento salvo de qualquer condicionalidade, salvo da armadilha da reciprocidade. Acredito que amar seja exatamente isto, uma lealdade incondicional, um comprometimento cego .

Estas são espécies de definições que tocam nossa alma. Afinal, em um contrato, quando acontece o descumprimento de uma das partes a outra fica automaticamente desobrigada de manter a sua. Amar é o reverso de tudo que julgamos normal ou natural, é a contestação de todas as convenções. É a sabotagem dos planos feitos para ninar nosso egoísmo, é uma inversão de valores. Uma luta contra os mecanismos de auto-sobrevivências que imperam por milênios na existência humana. Amar não é apenas ser fiel a alguém, é ser fiel a um sentimento, um sentimento que se personifica.

Amar é mesmo diante de alguns deslizes do outro, você não pensa em se vingar e não o humilhe com exigências de desculpas, é quando os erros dos outros não comprometem os projetos que fizeram juntos. Amar é compreender plenamente a Teoria Heliocêntrica de Copérnico, existe outra coisa em torno do o qual meu mundo gira. . Amar é não se resignar as limitações, porém sem que isto comprometa a admiração infinita que sem tem pelo outro.

Fidelidade e amor parecem ser palavras quase sinônimas para o Nelson, talvez mais, amor e verdade. Não posso discordar dele, acredito que toda verdade tem um núcleo de amor e todo amor pode ser tomado com um modelo atômico de milhares de afetos girando em torno de um núcleo de verdade.



Minha pequena Ditadura das novidades

É madrugada, deveria estar dormindo, é o que a maioria das pessoas fazem agora. Sinceramente fazer o que a maioria das pessoas fazem é coisa que nunca me encantou. Ficar com a maioria é estar amordaçado ao convencional. Não suporto rotinas, preciso de coisas novas, minha liberdade não admite algemas. Estar com a maioria pelo menos nos sistemas democráticos significa vencer, mas, nem mesmo o sabor doce das vitórias me ilude. Não que seja íntimo das derrotas, pelo contrário, minha vida é a demonstração clara que derrota alguma pode me vencer.

O fato é que vivi quase toda minha vida fazendo coisas que deram errado, me orgulho disto, e que me tornando amigos dos meus erros, eles me educaram para errar, penso que isto tenha sido a coisa mais certa que fiz na vida, preparar-me para errar.

Preparar-me para errar foi a forma que dominei a minha necessidade pelo original. Pessoas que temem errar não arriscam, não tentam coisas novas, ficam aprisionados ao passado. A criatividade nasce desse destemor do fracasso, quem teme fracassar, cumpre rotinas, segue manuais, faz da vida uma receita de bolo, não cria. Dar à luz coisas novas e colaborar com Deus na sua tarefa em nos presentear com a diversidade, é tarefa de quem não tem medo do fracasso e compromisso com o eternamente novo. Habita em mim uma obsessão, de deixar impregnado nas coisas um cheiro de originalidade.

Se existe uma coisa que mais nos torna humanos é a capacidade de inventar e reinventar. Coisas nunca sonhadas, desejos que possam voar, diálogos em línguas que não existiam ainda, amores pescados vagando pelos ares, lágrimas por dores que não existem . Eu penso como o Pessoa “o inventor é um fingidor”.

Eu sou como o Manoel de Barros

Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta o lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.”

Pessoas diferentes dizendo as mesmas frases significam coisas novas. Eu sou um obsecado pelo sempre novo. A definição de paraíso para mim seria isto “uma maravilha sempre nova, instante a cada instante para toda eternidade”. A palavra evangelho significa boa nova, só um ser divino usaria uma palavra destas, afinal, uma coisa começa a deixar de ser boa na medida que deixa de ser nova.

Esta eterna novidade, que o Pessoa conclama, faz de nós seres novos. Os atores medievais eram impedidos de serem enterrados em cemitério públicos, acreditava-se que eles só poderiam ter pactos demoníacos, afinal, como alguém poderia ser ele mesmo e ao mesmo tempo ser "Outros".

Este é meu desejo, queria um cemitério que fosse só meu , “e que eu preciso ser outros ...”

10 de abr. de 2009

Os versos que te fiz




Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto ! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

(Florbela Espanca)

 
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